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Poética da Urbanidade - Estudos interculturais
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Epidaurus
Materiais para as discussões do Colóquio Internacional de Estudos Interculturais (2004)

 

EPIDAURO-SÃO PAULO NO PROGRAMA DE ESTUDOS INTERCULTURAIS "POÉTICA DA URBANIDADE" PELOS 450 ANOS DE SÃO PAULO

MEDICINA, ARQUITETURA, TEATRO E MÚSICA
Epidaurus, 27 de setembro de 2003

Súmula

 

Não há testemunho mais eloqüente da dimensão extraordinária do culto a Esculápio e de sua posição transcendente no quadro integral da antiga cultura do que o conjunto das ruínas de Epidaurus.

Epidaurus, hoje em fase de restauração e até mesmo de reedificação parcial, o que demonstra a importância que assume na reflexão arqueológica de influentes estudiosos e órgãos culturais da Grécia, não pode ser visto como resto de um mero sanatório da Antigüidade.

A prova mais evidente da integralidade relacionada com conceitos de saúde no mundo antigo é o teatro de Epidaurus, exemplo mais magnífico da arquitetura teatral helênica, de extraordinária relevância para a história da arquitetura e da música. Com a sua modelar acústica, que não pode ser apenas fruto do acaso, esse teatro tornou-se o principal exemplo da capacidade construtiva dos antigos arquitetos. A representação dramática, e sobretudo a de cenas da mitologia fazia parte integrante do tratamento de cura. Não pode ser vista simplesmente como complementação lúdica, de recreação e de lazer dedicada ao relaxamento no contexto da reabilitação. A representação trágica e a das ações dos deuses não pode ser considerada apenas como manifestação teatral no sentido superficial do termo, nem muito menos como atividade educativa, mas sim como revivificação de símbolos de fundamental importância para o processo regenerador.

Os resultados das investigações arqueológicas revelam a função essencial que cabia à regeneração interior do doente. Tudo indica que a atenção principal do sistema medicinal era dirigida em primeiro lugar ao homem interior, ou seja, ao espírito. Esse procedimento apenas pode ser compreendido se considerado a partir de uma perspectiva que coloca a doença de corpo como resultado de uma causa interna. A ação medicinal era sobretudo dirigida ao homem invisível. Por essa razão, compreende-se a importância dada aos atos simbólicos que o doente deveria perfazer ao chegar ao sanatório/santuário e, sobretudo, à importância dada ao sono e à interpretação de sonhos no processo medicinal. Como elemento essencial do sistema de cura, os pacientes deviam pernoitar em ambiente de forte carga sugestiva, após necessárias preparações de cunho cerimonial. Em sonhos, o médico divinizado, se surgisse, apontava o caminho para a cura.

A prática desse sistema de "incubação" permaneceu viva através dos séculos no âmbito do culto dos santos Cosme e Damião, considerados como padroeiros de médicos no cristianismo. Com esses santos se relaciona um conjunto de conceitos associados a gêmeos, capaz de ser estudado tanto do ponto de vista histórico-mitológico como a partir das tradições populares. Altamente significativo é o fato de ter existido um templo dos Dioscuros em localização privilegiada do sanatório/santuário de Esculápio. Tudo indica, portanto, que um dos fatores essenciais na interpretação de Esculápio seja o seu relacionamento com o símbolo dos gêmeos, um contexto até hoje pouco considerado na literatura medicinal e mitográfica. Aspectos até hoje difíceis de serem compreendidos tanto no mito de Esculápio como nas tradições cristianizadas dos Dioscuros podem ser elucidados se considerados em conjunto. Um exemplo importante é o papel concedido ao dinheiro em ambos os casos, outro, aquele demonstrado com o relacionamento dos gêmeos com o mundo infanto-juvenil na tradição cristã.

Epidaurus, um Asklepeion, foi santuário de Asklepios, assim como similares centros em Kos, Knidos e Pergamon. Além de simples sanatórios, foram centros de peregrinação e de formação de médicos, compreendidos esses como uma espécie de sacerdotes, uma vez que atuavam no íntimo dos pacientes. O tratamento físico baseava-se sobretudo na preparação necessária à a regeneração psíquico-espiritual, constituindo-se em dietas e exercícios físicos. Prova da importância da ginástica nessa visão integral do corpo e da alma é o representativo estádio do conjunto arqueológico de Epidaurus. A localização geográfica privilegiada do santuário contribuia também ao processo curativo. Em período posterior da história, com a dissolução dos antigos sistemas do saber, essas localidades continuaram a servir como estações de tratamento pela qualidade do ar e da água. É compreensível que Esculápio tenha sido cultuado conjuntamente com a deusa Hygeia.

Os estudos mitográficos relativos a Esculápio não levaram até há poucos anos a resultados satisfatórios sob o ponto de vista da elucidação dos dados transmitidos pelas antigas fontes. Alguns o consideram como um herói curador, outros como um "espírito ctonico", espécie de oráculo de tratamento. Tanto a denominação como a origem do mito surgem como de difícil explicação. É dado como seguro que Esculápio teve a sua origem na Tessália. Tudo indica, porém, que aqui se confundem origens míticas, a serem investigadas no quadro da geografia simbólica, com a idéia de um local de nascimento de personagem histórico. Os relacionamentos sincretísticos de Esculápio indicam, porém, que o símbolo também tinha sido conhecido por outros povos, sendo certamente de origem anterior ao século V° A.C.. Assim, no Egito, Esculápio correspondia à divindade denominada de Imuthes-Imhotep (Clemente de Alexandria, Strom. 1,21), na área cultural fenícia, a Esmun. Sob Ptolemeus, parece ter sido associado a Sarapis. Em Homero, ele surge como figura de médico e herói.

A introdução de seu culto em Atenas é datada do ano 420 A.C., em Roma no ano 293 A.C. Nesse último caso, foi ele levado a Roma em período de peste na forma do seu animal símbolo, a serpente sagrada. E aqui tem-se mais um elemento de essencial importância na análise do repertório simbólico relacionado com Esculápio: a serpente, que não pode deixar de ser considerada em posição de extraordinário relêvo no conjunto do imaginário da Antigüidade e do processo de sua cristianização.

Os trabalhos mitográficos e, sobretudo, os escritos relacionados com a imagem de Esculápio em publicações médicas e da história da medicina não levaram suficientemente em consideração a sua inserção no conjunto global da ordenação simbólica. Não chegaram, assim, a compreender realmente o sentido mais profundo dessa imagem, limitando-se a suposições de natureza historiográfica ou a compilações de dados mitográficos que permanecem, no seu todo, incompreensíveis. Tem-se, assim uma situação difícil de ser aceita na medicina, pois uma figura simbólica de central relevância não tem sido considerada apropriadamente.

A superação do particularismo que levou a um desconhecimento do significado dessa imagem numa visão integral do mundo e do homem foi objeto de estudos e pesquisas desenvolvidas nas últimas décadas. Cabe a esses esforços científicos e cognitivos o mérito de ter revelado o íntimo relacionamento do mito de Esculápio com o repertório simbólico do Cristianismo. Sobretudo o relacionamento existente entre Esculápio e São Bento, ou seja, o patriarca da medicina e o "patriarca da cultura ocidental", encontra-se já há anos no centro das reflexões. Esse relacionamento, apenas passível de ser entendido dentro do repertório global dos símbolos, considerado a partir de perspectivas adequadas, deve ser considerado no âmbito de uma "Antropologia musical cristã", ou seja, de um sistema de concepções de cunho antropológico-musical inerente à visão do mundo e do homem inerente à cultura cristã-ocidental, de remotas raízes na Antigüidade.

Antonio Alexandre Bispo

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