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Poética da Urbanidade - Estudos interculturais
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Meteora
Materiais para as discussões do Colóquio Internacional de Estudos Interculturais (2004)

 

METEORA-SÃO PAULO NO PROGRAMA DE ESTUDOS INTERCULTURAIS "POÉTICA DA URBANIDADE" PELOS 450 ANOS DE SÃO PAULO

ESPIRITUALIZAÇÃO DA MATÉRIA. FUNÇÃO SEGUE À FORMA
Meteora, 21 de setembro de 2003

Súmula

 

Nas reflexões relativas aos conceitos urbanológicos sob a perspectiva das ciências da cultura tem-se demonstrado a necessidade de revisões críticas das concepções teóricas de Paolo Soleri, uma vez que dizem respeito a problemas fundamentais da compreensão filosófica da arquitetura e da cidade.

As suas visões e propostas encontram-se em obras tais como "Arcology. The City in the Image of Man" (1969), "The Sketchbooks of Paolo Soleri" (1971), "The Bridge Between Matter and Spirit Is Matter Becoming Spirit: The Arcology of Paolo Soleri" (1973), "Arcosanti: An Urban Laboratory?" (1983) e "Technology and Cosmogenesis" (1985).

Apesar de toda a sua originalidade, a ideologia de Soleri se revela altamente questionável e, sob muitos aspectos absolutamente inaceitáveis, sobretudo no que diz respeito às suas posições relativas a questões hoje tratadas sob a perspectiva de gênero (gender). O seu renome e o prestígio de suas obras não podem ofuscar a necessidade de um profundo questionamento de suas idéias sob aspectos filosóficos e científico-culturais.

Certos princípios de seu singular pensamento são, na verdade, facilmente compreensíveis, pois remetem a conhecidas correntes da teologia e da filosofia, ainda que por ele curiosamente interpretadas.

No escrito "A ponte entre matéria e espírito é matéria que se torna espírito" (1973) são elucidados conceitos básicos da Arcologia. O postulado de Soleri é o da existência de um fluxo, um arco que revolve a matéria física na devoção da consciência e da energia metafísica. Aqui é que o urbanista deveria começar. Não se trataria de uma reconciliação intermediária entre o espírito e a matéria, mas sim de uma âncora metafísica em cada local e a cada instância da ação. A irradiação seria o fulgor da metamorfose da matéria em espírito. Essa irradiação se daria apenas nos casos em que a matéria organizada se transformasse em matéria ultra-organizada em processo de transcedência de si própria.

A tecnologia não seria nem âncora nem irradiação. O oposto do credo funcional seria o conceito de Deus como espírito puro. A tecnologia seria a habilidade construtiva de realizar a ponte, ou seja uma sucessão de estruturas fundamentada mineralmente e em perpétua tentativa de elevar-se. A estrutura física seria o esqueleto do espírito, a estrutura seria a ponte ou o veículo na qual o espírito viaja e cresce. A energia física consumada na viagem levaria à geração de energia vital que, sendo conhecimento, transcenderia a energia física.

Soleri define a criação de energia mental como sendo um processo de apreensão, de aumento de conhecimento, ou seja, um processo civilizatório. A metodologia tecnológica seria tricéfala, compreendendo a complexidade, a minituarização e o seu prolongamente duracional. Essa seria a trindade que faria cintilar a pedra e torná-la espírito.

Contrariando o postulado do Modernismo, segundo o qual a forma segue a função, para Soleri seria a função que segue a forma, ou seja, a estrutura seria anterior à performance. Isso seria demonstrado pela vida biológica. Cada modificação seria como que um novo instrumento que faz o organismo capaz de cumprir um certo ato que não poderia ser efetuado antes. A forma estaria na mutação genética emergente, uma estrutura que surge e se aperfeiçoa com os eventos. A questão que Soleri coloca é a da realização voluntária e sábia desse processo no universo mental. Isso seria tarefa do processo estético.

A arcologia é, para Soleri, uma tentativa com a finalidade de dar a todas as pessoas o caminho mais rápido de comunicacão, informação e ação. Procurar ampliar o universo pessoal de cada indivíduo situando-o no centro. No seu limite mais extremo, a arcologia tornar-se-ia puntiforme, levando a um "não espaço". Essa transformação nada mais seria do que a sonhada onipotência e onipresença de Deus. A Civitas Dei se tornaria, assim, semelhante a Deus.

Uma concepção de Soleri de grandes conseqüências é a do homem mutante. A complexidade da cidade age sobre o homem não apenas culturalmente, mas sim também geneticamente. Haveria um íntimo elo entre o urbanizado e a urbs. A espécie toda seria diretamente dependente da atmosfera urbana. Para uma população responsável e apaixonada, o ambiente seria construtivo, promissor e digno de respeito. Um outro ambiente favoreceria, pelo contrário, uma seleção genética de reduzida vitalidade e de natureza dura e beligerante. O habitante de Nova Iorque seria de uma "raça" totalmente diferente do cidadão de Iowa, não apenas culturalmente, mas sim geneticamente (!).A seleção natural seria, para o habitante da cidade, uma seleção urbana.

A cidade do homem de compaixão, do homem que por definição vê a vida como transformação da matéria em espírito seria a cidade aprazível, a Civitas Dei, pois é através dela que o homem mutante seria mais profundamente aquele que age por amor. A cidade aprazível seria a única cidade promissora para a espécie, a única que poderia permitir a realização pessoal.

Quanto à música, Soleri faz também observacões altamente questionáveis e unilaterais. Para ele, a maior parte da "soul music" seria música do corpo. A parte superior do homem renunciaria à carne; a parte superior, porém, diria à música rock: "você pertence aos meus avós, mas eu pertenço a meus descendentes". A música rock seria aquela do passado. O homo sacramentalis não se fixaria na idolatria da carne, ou seja, do rock. O rock se referiria ao elementar, à selvageria simplicista do primitivismo. Longe de ser a onda do futuro, o rock seria "roupa velha".

A importância da música no pensamento de Soleri se manifesta no organigrama do projeto arcosantino de um laboratório urbano. Esse organigrama foi composto em 1987 e demonstra as idéias de Soleri relativas à construção urbana e à sistematização territorial. O Centro Musical, dedicado a sua mulher Colley, era conectado com casas de hóspedes e outros eventos e atividades de trabalho. Dele saia o elo que levava às obras da natureza e da arte, ligadas aos nativos americanos e aos jardins.

O pensamento de Soleri apresenta-se, assim, como sendo uma mistura pouco coerente de fragmentos teológicos, filosóficos, místicos e, pelo que tudo indica, teosóficos. O fascínio que exerce por ter retomado temas de profundidade teológica e filosófica na discussão arquitetônica e urbanológica não esconde as suas falhas e sua heterogeneidade. Trata-se de um complexo esdrúxulo de idéias, algumas fundamentadas, outras não, que serve para a justificação de uma visão do mundo e do homem altamente conservadora e até mesmo reacionária nos seus aspectos morais.

O caminho apontado por Soleri, na sua crítica ao conceito modernista de que a forma deve seguir à função, preferindo o postulado de que é a função que deve seguir à forma, e na sua redescoberta da antiga concepção teológica da beleza como esplendor da ordem, somente pode ser percorrido com base em aprofundados estudos da tradição do pensamento religioso e místico. Este estudo, porém, somente pode ser empreendido se acompanhado de revisões daquilo que foi construído históricamente por teólogos e com o intuito de reconstrução de sentidos perdidos.

Antonio Alexandre Bispo

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